sábado, 26 de outubro de 2013

Estudo do Percurso Diacrônico dos verbos Haver e ter

No latim clássico, o verbo habere era um verbo estativo, que tinha vários

empregos. Ele podia significar habitar, como em qui Syracusis habet (quem habita em

Siracusa), e entrava na construção de algumas expressões fixas, como bene habet (isso

vai/está bem). Ele entrava também em construções que têm, hoje, o sentido de

estar-com/estar-em, como em habere vestem (estar com um vestido), das quais o

sentido de posse parece ter derivado. Assim, por exemplo, habere fundum significava

habitar/estar-em um sítio, como também ter a posse legal dele. Esse emprego com

sentido de posse se desenvolveu e habere passou a concorrer com a expressão esse +

dativo, verificando-se a alternância de expressões como mihi est aliquid e habeo

aliquid (eu tenho dinheiro). Habere era então um verbo predicativo que mantinha sua

rede temática intacta, atribuindo papéis q de possuidor e possuído. Segundo Sampaio

(1978), também no latim clássico, habere foi usado na construção de uma perífrase

aspectual que supria a lacuna deixada pelo aoristo do indo-europeu, que o latim não

tinha. A noção de posse, dada por habere, era fundamental para a compreensão dessa

perífrase. Entretanto, aos poucos essa noção de posse dentro da perífrase foi se

perdendo e o verbo habere, nesse contexto, tornou-se um verbo auxiliar, desprovido de

significação. Concomitantemente, o verbo habere predicativo foi perdendo o conteúdo

semântico específico de posse e entrando em construções predicativas de caráter

genérico. No latim pós-clássico, registram-se construções em que habere aparece com

sujeito inanimado, num sentido próximo ao do verbo conter. Nesse período, habere

aparecia, ainda que raramente, em construções impessoais de sentido existencial,

concorrendo com o verbo seer. Esse tipo de construção se desenvolveu mais durante o

período do latim vulgar, sempre alternando com construções de sujeito locativo

inanimado.É possível que, com o esvaziamento do conteúdo semântico do verbo e a

conseqüente detematização da posição de argumento externo, os sujeitos locativos

tenham sido reanalisados como adjuntos preposicionados internos a VP e dessa

reanálise tenha resultado a construção impessoal do tipo existencial.

Assim, haver entrou em português com as seguintes características: (i) com uma

rede temática esvaziada, realizando construções predicativas genéricas; (ii) com a

posição de sujeito detematizada, realizando construções existenciais; e (iii)

completamente desprovido de qualquer conteúdo semântico, como verbo auxiliar

formador de perífrases aspecto-temporais.

No que diz respeito ao verbo tenere, ele parece ter seguido de perto os passos de

habere. Originalmente, ele era um verbo transitivo-ativo e tinha um significado

próximo ao de manter/obter. Aos poucos ele foi coocorrendo
 
com habere nas expressões de posse. É possível que naquela época tenha existido
 
alguma preferência  pelo uso de habere nas expressões de posse de qualidades inerentes
 
ao possuidor, enquanto que tenere era preferivelmente empregado nas construções de
 
posse de bens
 
materiais ou externos ao possuidor, principalmente se a idéia de posse está relacionada

com traços de agentividade ou causa.

 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário