empregos. Ele podia significar habitar, como em qui Syracusis habet (quem habita em
Siracusa), e entrava na construção de algumas expressões fixas, como bene habet (isso
vai/está bem). Ele entrava também em construções que têm, hoje, o sentido de
estar-com/estar-em, como em habere vestem (estar com um vestido), das quais o
sentido de posse parece ter derivado. Assim, por exemplo, habere fundum significava
habitar/estar-em um sítio, como também ter a posse legal dele. Esse emprego com
sentido de posse se desenvolveu e habere passou a concorrer com a expressão esse +
dativo, verificando-se a alternância de expressões como mihi est aliquid e habeo
aliquid (eu tenho dinheiro). Habere era então um verbo predicativo que mantinha sua
rede temática intacta, atribuindo papéis q de possuidor e possuído. Segundo Sampaio
(1978), também no latim clássico, habere foi usado na construção de uma perífrase
aspectual que supria a lacuna deixada pelo aoristo do indo-europeu, que o latim não
tinha. A noção de posse, dada por habere, era fundamental para a compreensão dessa
perífrase. Entretanto, aos poucos essa noção de posse dentro da perífrase foi se
perdendo e o verbo habere, nesse contexto, tornou-se um verbo auxiliar, desprovido de
significação. Concomitantemente, o verbo habere predicativo foi perdendo o conteúdo
semântico específico de posse e entrando em construções predicativas de caráter
genérico. No latim pós-clássico, registram-se construções em que habere aparece com
sujeito inanimado, num sentido próximo ao do verbo conter. Nesse período, habere
aparecia, ainda que raramente, em construções impessoais de sentido existencial,
concorrendo com o verbo seer. Esse tipo de construção se desenvolveu mais durante o
período do latim vulgar, sempre alternando com construções de sujeito locativo
inanimado.É possível que, com o esvaziamento do conteúdo semântico do verbo e a
conseqüente detematização da posição de argumento externo, os sujeitos locativos
tenham sido reanalisados como adjuntos preposicionados internos a VP e dessa
reanálise tenha resultado a construção impessoal do tipo existencial.
Assim, haver entrou em português com as seguintes características: (i) com uma
rede temática esvaziada, realizando construções predicativas genéricas; (ii) com a
posição de sujeito detematizada, realizando construções existenciais; e (iii)
completamente desprovido de qualquer conteúdo semântico, como verbo auxiliar
formador de perífrases aspecto-temporais.
No que diz respeito ao verbo tenere, ele parece ter seguido de perto os passos de
habere. Originalmente, ele era um verbo transitivo-ativo e tinha um significado
próximo ao de manter/obter. Aos poucos ele foi coocorrendo
com habere nas expressões de posse. É possível que naquela época tenha existido
alguma preferência pelo uso de habere nas expressões de posse de qualidades inerentes
ao possuidor, enquanto que tenere era preferivelmente empregado nas construções de
posse de bens
materiais ou externos ao possuidor, principalmente se a idéia de posse está relacionada
com traços de agentividade ou causa.